Apresentada a mim mesma tardiamente: a chegada da neurodivergência em minha vida.
- Juliana Martins
- 3 de jun.
- 4 min de leitura

A vida tem maneiras estranhas de nos “chacoalhar”.
Durante muitos anos, me senti estranha. Desde muito nova, percebia que a minha mente funcionava de uma forma diferente. Enquanto as outras crianças se entretinham com brincadeiras simples, eu estava imersa em reflexões complexas para a idade. Adulta, o cenário não mudou muito — apenas ficou mais solitário.
Pensei que havia algo de errado comigo.
O mundo me parecia barulhento demais. Sons repetitivos, ambientes agitados ou interações sociais intensas me tiravam do eixo. Comecei a carregar fones de ouvido para todos os lugares. Em ambientes corporativos onde o uso de fones não era permitido, eu escondia os fios entre os cabelos para conseguir trabalhar. Ao sair na rua para qualquer compromisso, eu não me desesperava quando notava que tinha esquecido o celular, as chaves, a carteira. Me desesperava ao descobrir que tinha esquecido meus fones.
Minha mente nunca parava.
Os pensamentos vinham em galhos, como uma árvore em expansão infinita. Uma ideia puxava outra, que puxava mais duas, e assim por diante. Enquanto muitos chamavam isso de “criatividade”, para mim era uma mistura de exaustão mental e inquietação permanente. E essa inquietação se manifestava também no mundo físico: mil projetos em andamento, ideias pulsando, vários livros lidos de uma única vez e uma busca constante por conhecimento, propósito, significado e profundidade.
A falta de paciência com ritmos diferentes me levava, muitas vezes, a fazer trabalhos acadêmicos ou profissionais sozinha — e isso me fazia sentir culpada. Eu me perguntava por que era tão difícil relaxar, dividir, confiar e entender os diferentes ritmos.
O sentimento de não pertencimento me acompanhava como uma sombra.
Penso hoje que talvez por isso a neurociência sempre tenha me encantado. Estudar o cérebro era, no fundo, minha tentativa inconsciente de entender o meu próprio. De explicar por que eu era "demais" e, ao mesmo tempo, "de menos".
Foi só agora, aos 41 anos, depois de um mergulho profundo em entrevistas, anamneses e testes neuropsicológicos, que finalmente recebi resumidas em 3 termos a minha resposta:
Altas habilidades. Superdotação. Neurodivergência.
Três termos que, por muito tempo, me pareceram distantes — e até incômodos. Carregados de estereótipos, de uma certa arrogância intelectual que eu nunca quis vestir. Mas quando eles chegaram até mim com base técnica, profissional, científica, com um olhar humano e respeitoso, elas não soaram como um rótulo. Soaram como um abraço. Como alívio.
A partir do diagnóstico eu passei a entender como o meu cérebro funcionava:
Veloz. Com excessos de pensamento. De sensibilidade. De percepção. De angústia.
É captar o mundo em alta definição — e se cansar por isso.
É enxergar o que ninguém vê — e ser desacreditada por isso.
É precisar de silêncio para não implodir - e ser chamada de estranha ou antisocial.
É ter insights rápidos, profundos e interconectados — e se sentir culpada por parecer arrogante.
É pensar tanto que, por vezes, se paralisa, ou perde o sono e a paz.
Ao receber o laudo eu chorei. Chorei ao pensar que durante muito tempo, eu me calei.
Tive medo de ser vista como "sabe-tudo", como arrogante, como aquela que "se acha demais". Cheguei ao ponto de pedir perdão a Deus por, em alguns momentos, achar que eu poderia me ver ou me achar melhor que os outros. Isso me corroía e me trazia um conflito moral imenso. Então passei a me rebaixar. A tentar fazer o que todos faziam, a participar de conversas que não me interessavam, a frequentar lugares que nada tinha a ver comigo. Fui me diminuindo para caber nos espaços. Silenciando minhas opiniões. Deixando de contribuir. Me apagando aos poucos.
E talvez o mais doloroso: carregando a culpa por não entender por que eu era assim.
A falta de um diagnóstico, de um nome, de uma explicação, me torturou silenciosamente por anos. Especialmente na fase adulta, quando as exigências do mundo corporativo, da maternidade e da vida acelerada foram deixando menos espaço para simplesmente… ser.
Pensei muito se eu deveria compartilhar isso fora do meu círculo mais íntimo, mas ontem em uma conversa com uma grande amiga, recebi a pergunta que me fez mudar de perspectiva:
“Você trabalha com saúde mental. Como vai esconder justamente a sua neurodivergência?”
Foi aí que entendi que eu não deveria me esconder, e sim criar pontes.
Abrir caminhos. Dar nome às dores. E abrir espaço para que outras pessoas também se reconheçam.
Esse artigo não é sobre mim.
É sobre quantas pessoas estão adoecendo por tentarem se encaixar onde não cabem.
É sobre quantas pessoas carregam diagnósticos errados, rótulos injustos e silêncios profundos por simplesmente funcionarem de forma diferente.
É sobre o quanto a gente sofre quando não se entende — e o quanto floresce quando finalmente se reconhece.
Hoje entendo que a ramificação de pensamentos que tanto me sobrecarrega tem nome: pensamento em arborescência. E tantos outros nomes foram dados para tantos desconfortos e culpa que eu sentia até então.
A superdotação é um tema ainda envolvo em muitos estigmas, preconceitos e falta de conhecimento adequado. Grande parte dos materiais disponibilizados são voltados para o diagnóstico em crianças e adolescentes, mas ao iniciar a minha busca por um maior entendimento sobre a superdotação em adultos, um mundo se abriu (pessoas, associações, livros poucos divulgados) e agora, além de meus muitos projetos em andamento, tenho mais um: ser apresentada a mim novamente, mas agora, do jeito correto.
Hoje, eu não quero mais me esconder. Nem me desculpar por pensar rápido demais, ser deslocada, profunda, intensa, barulhenta por dentro, estranha aos olhos de alguns. Porque talvez os meus “defeitos” nunca tenham existido.
Talvez o que faltava era apenas um nome. E um lugar seguro para me reconhecer.
Descobri que passei 41 anos da minha vida tentando me encaixar, quando tudo o que eu precisava na verdade era me encontrar.
E aqui vou eu, iniciando mais um capítulo da minha vida. E antes tarde do que nunca, que bom que me descobri.
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